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9/08/2010

AVE DE SÃO CRISTÓVÃO

Uma Ave Oculta
Autoria: CETHOMAR Círculo SC
(Degraconis e Voltron)


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A pintura mural da Lenda de São Cristóvão na Charola

Nove e sete da noite. O encontro estava combinado junto à estátua de Gualdim Pais. Mesa reservada no restaurante “o Tabuleiro”. A conversa iria ser anotada, memorizada e gravada. Personagens: Degraconis e Voltron.

DG: Então como conseguiste ver a Ave na pintura mural do São Cristóvão? Nunca ninguém me referiu a sua existência. São escassos, senão raros, os escritos sobre essa pintura.

VR: Para dizer a verdade, foi a ave que me descobriu! Senti algo a observar-me na pintura! Olhei, e entre as folhas verdes da árvore, existia uma presença estranha. Era ela… que fazia ali aquela ave? Misteriosa e talvez de grande importância… quem sabe?

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A Ave dissimulada nos troncos da árvore

DG: Misteriosa e oculta! Das centenas de imagens que analisei antes de escrever um dos anteriores posts, nenhuma inclui uma ave na árvore, pelo menos como esta, sozinha. Algumas pinturas incluem-nas, mas julgo serem meramente decorativas ou parte integrante da paisagem em que o pintor enquadrou esse episódio da vida de S. Cristóvão. Esta é diferente. Apesar de oculta tem bastante destaque a partir do momento em que damos conta dela. Na lenda também não consegui encontrar referência explícita à existência de uma ave.
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Pinturas da Lenda de São Cristóvão

VR: Além da ave, se observares bem, de todas essas imagens que recolheste e me deste a ver, conseguirás perceber a presença repetida de um homem com uma candeia na mão! Na pintura mural da Charola também esse homem está presente! É um elemento característico das pinturas de São Cristóvão! Mas se reparares bem na pintura, vais verificar que ele está mesmo em frente do pássaro… até está a olhar para ele! Mas o mais interessante é o que ele segura na mão! Aquilo poderá ser, segundo as minhas conclusões, uma gaiola!

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A suposta candeia que entendemos talvez ser uma espécie de gaiola

DG: Uma gaiola? De facto essa candeia também é uma presença constante na generalidade das pinturas conhecidas. Inicialmente tive algumas dúvidas sobre esse objecto que o “ermita” segura na mão, mas da comparação entre as diversas imagens que pude analisar, concluí, sem qualquer dúvida, que se tratava de uma candeia. O que me permite afirmar com segurança essa conclusão, é o facto de em algumas pinturas essa suposta candeia ser mesmo representada como um facho de luz. Possivelmente a Luz de Cristo, se pensarmos que foi precisamente essa personagem que deu a conhecer Cristo a S. Cristóvão.
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O ermita em diversas pinturas nitidamente com uma candeia na mão
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O ermita com um facho de luz na mão

VR: Pois, mas neste caso…

DG: Podemos então pensar que estamos perante mais uma pintura Portuguesa que, quanto a esta lenda, apresenta alguns aspectos sui generis em relação à pintura europeia. Mas achas mesmo que não se trata de uma candeia e sim de uma gaiola?

VR: Aquilo não é uma candeia! Não existe nenhuma cor que evidencie uma iluminação, e para além disso tem uma espécie de porta pequena aberta na direcção do pássaro!

DG: De facto o seu interior parece ser de um forte negrume. De luz parece nada ter.
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Detalhe

VR: Exacto. Chegas à mesma ideia a que eu cheguei.

DG: Voltando à ave. De que pássaro se poderá tratar?

VR: Já estive a pensar muito nesse assunto! Estudei aquela ave e cheguei a algumas conclusões! O tamanho da ave, o bico e o pescoço comprido são algumas das características que analisei na pintura. Características tais, que quase me fizeram acreditar tratar-se de um abutre, especialmente da espécie grifo. Mas já coloquei de parte essa possibilidade. Outra possível hipótese é ser uma andorinha. Para dizer a verdade, já nem sei se aquilo representa uma ave real ou apenas uma ideia!

DG: Não seria de estranhar ser apenas a ideia de uma ave e não se tratar de uma espécie de ave em concreto. Contudo até sou capaz também de reconhecer uma andorinha como bem disseste.

VR: Então que simbolismo podemos encontrar numa andorinha que nos possa reforçar a ideia?

DG: Possivelmente não será uma andorinha e talvez nunca venhamos a saber o que pretendeu o pintor ali representar. Todavia, só por si já lhe podemos apontar um simbolismo evidente, ou seja, aquele que é usual atribuir às aves.

VR: O qual deve ser alto visto conseguirem voar próximo do céu…

DG: …e longe da terra. Sim, isso levou a que os autores dos bestiários aproveitassem a natureza desses animais para extrair ensinamentos moralizantes elevados.

VR: Então e sobre a andorinha em particular?

DG: Antes de mais, temos sempre que pensar em que tradição se vai interpretar o objecto visto poder diferir bastante de cultura para cultura. Não temos dúvidas que neste caso, estamos perante a tradição cristã, contudo, teremos de pensar se a sua representação é anterior ao Concílio de Trento ou não. Ou seja, sem esta contextualização simples, arriscam-nos a nem chegar próximo do que a imagem pretendia transmitir aos iletrados que a viam.

VR: De facto…

DG: A andorinha, pelo facto de ser uma ave migratória, tornou-se um símbolo da ressurreição de Cristo. Assim como Cristo desaparece e volta aparecer após três dias, também a andorinha se deixa de ver e volta a surgir na primavera.

VR: Espera ai! Queres tu dizer que anuncia então a primavera? Não é sinal de Primavera a presença abundante das flores na pintura! Fantástico!
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Pintura onde se repete a presença de flores

DG: Bem visto. Todavia lembro-te que a lenda refere a árvore ter florido e talvez daí a presença das flores. Volto a repetir que temos ter cuidado com as identificações que tentamos fazer, assim como os sentidos que lhes atribuímos.

VR: Pois…

DG: Conta uma antiga lenda que quando a Andorinha regressou dos misteriosos locais onde se recolhia durante o Inverno, ao passar por Jerusalém, deparou-se com Cristo crucificado, tendo então “vestido” uma capa negra para fazer luto.

VR: Ainda hoje a mantêm vestida então. Achas que a ave pode representar a alma de São Cristóvão?

DG: É uma hipótese. As aves, mais concretamente as suas asas, costumam representar a alma do homem. Se neste caso estivermos perante uma andorinha, até te posso dizer que representaria a alma penitente e dos arrependidos. Esta é uma das interpretações específicas da andorinha. Terei agora dificuldades em explicar porquê, mas podes consultar o Livro das Aves escrito no séc. XII, seguindo a tradição de interpretar simbolicamente e alegoricamente a natureza de vários animais e ainda de seres fabulosos, de pedras etc. Em Portugal surgiu uma adaptação desses manuscritos no Convento do Lorvão.

LIVROS DAS AVES_DIVERSAS GRAVURAS 
Da esq - dir.: Rola, Fénix, Corvo, Andorinha, Codorniz, Águia, Palmeira e Pomba
Livro das Aves, escrito em 1183, Mosteiro do Lorvão

VR: São Cristóvão é sem dúvida uma alma penitente e arrependida. E à árvore poderemos atribuir algum sentido em especial?

DG: Sim, mas acho que não vale a pena tentarmos associar-lhe algum sentido em particular. Caso fosse uma palmeira, o seu sentido seria facilmente apreendido. É uma árvore que só apresenta sentidos positivos e até se associa a Cristo.

VR: Mas não será uma palmeira certamente.

DG: Ainda sobre a ave, podemos pensá-la como a ave-do-paraíso, se bem que essa não tem asas (sorrisos). Não precisa porque no paraíso não existe necessidade de esforço. Não estão sujeitas à penosa lei da gravidade (sorrisos).

VR: Essa é boa! Mas agora que falas de Paraíso penso na árvore do paraíso…. à primeira vista, pela cor do fruto e pela forma da árvore, pensei que fosse uma laranjeira. A laranjeira pertence à família das Rutáceas, que engloba mais de mil espécies, quase todas tropicais ou subtropicais. Caracterizam-se por terem folhas lustrosas, cujas glândulas segregam óleos aromáticos, e pelas flores, que têm cinco pétalas. Mas sabes que a laranjeira não é uma árvore nativa na Europa, assim como não o é na Península Ibérica! Segundo alguns estudos que fiz no passado, a laranjeira foi plantada na península pelos mouros, quando estes dominavam estas terras.

DG: Já agora sabes como se diz Laranja em Turco?

VR: Sim… portukal! E em árabe diz-se portucale, em grego é portokali e em romeno é portocal. Compreende-se que o seu nome é muito idêntico ao nome Portugal. Com esta informação quase chegamos a perceber que o nome do nosso país, oriundo do nome Condado Portucalense, deriva da palavra laranja em árabe. Uma ideia extravagente a juntar a tantas outras.

DG: Queres dizer que Portugal pode derivar de palavra Laranja? Pronto lá se vai a teoria romântica da sua origem graalistica. Como deves saber, existe a ideia entre alguns estudiosos do oculto, Portugal derivar da junção de Porto e Graal. O selo rodado de Afonso Henriques, no seu ver, reforça essa ideia. Estou impressionado com as laranjas! Quando estive na Turquia, achei curioso designarem o nosso país de laranja na língua deles mas nunca imaginei que o fosse em tantas outras línguas. Já agora em Chinês também!

VR: Não, mas apesar de os mouros terem plantado por cá laranjeiras, os portugueses, no tempo dos descobrimentos, trouxeram laranjas da China para a sua comercialização. É por isso que as laranjas são denominadas "portuguesas" em vários países, especialmente nos Balcãs.

DG: De facto, até sou capaz de conseguir ali ver uma laranjeira com as laranjas meias encobertas pela folhagem, o que permite justificar alguma da falta de esfericidade do fruto. Então e as flores? Não são brancas as flores da laranjeira?

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VR: Sim, são! Mas as flores de fundo podem não pertencer à árvore ou pode ter as pintado dessa cor pr questões estéticas! E outro facto interessante é as flores da laranjeira terem cinco pétalas assim como essas flores!

DG: Todavia a lenda fala-nos de uma tamareira!

VR: Sim de facto, mas se observares bem, aquela árvore não tem características de tamareira! Para além disso, não existem tamareiras por estes lugares, como sabes!

DG: De facto uma Tamareira nunca será. Vejo que todas as flores têm 5 pétalas. O pintor deve ter-se inspirado numa laranjeira para esse efeito. Aliás existia um laranjal no Convento. Julgo que visível por detrás da Charola num iluminura quinhentista.

VR: Então vais gostar do que te vou contar a seguir! Sabes que nem todas as flores na pintura têm 5 pétalas! Existem 2, que eu descobri, que têm 6 pétalas!

DG: Não posso. Onde se escondem?

VR: Onde? Acredita que estão elas muito bem posicionadas! Uma em frente da cara de São Cristóvão e a outra mesmo ao pé do pássaro e da gaiola! Será coincidência?

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DG: Não sei o que pensar.

VR: Sabes que simbolismo poderá estar aqui envolvido? Que sabes sobre o simbolismo das flores e das árvores?

DG: Tenho algum conhecimento, mas não é oportuno alongarmo-nos nesse tema. Todavia também te digo que não vale a pena tentar decifrar significados desses elementos, sem conhecer bem a obra de um antigo monge do Convento de Cristo…

VR: Referes-te ao Frei Isidoro de Barreira que escreveu o “Tractado das significaçoens das plantas, flores, e fructos que se referem na Sagrada Escriptura : tiradas de divinas, & humanas letras, cõ suas breves considerações”?

DG: Bem, conheces bem o nome do livro. Nunca consegui decorar o título por inteiro. Infelizmente, só chegou até nós um volume. É essencial para se entender os significados que andavam associados às flores, plantas e frutos, pelo menos numa primeira abordagem. Mas voltando à gaiola! O facto de a gaiola estar aberta, caso seja uma gaiola, indica que espera o pássaro ou que o libertou, não? Pela posição do pássaro, diria que o espera. Terá isso algum sentido ou será apenas um detalhe sem importância ou intenção?

VR: Como tu dirias, nada na arte sacra é aleatório ou sem intenção. Tudo é pensado ao detalhe mas também não consigo concluir por uma hipótese ou outra.

DG: Pois…

VR: Faz-me bastante confusão que em todas as pinturas que analisámos, o objecto que agora pensamos ser uma gaiola ser sempre, e sem margem para dúvidas, um objecto que emana luz e neste caso em nada parece partilhar essa ideia.

DG: Apenas no século XVII, surgem dicionários e tratados que condensam esse vasto reportório iconográfico, para que o artista o possa utilizar de uma forma eficiente, sem correr o risco de não ser entendido. Baliza-se assim o pensamento simbólico às definições que essas enciclopédias obrigavam, em detrimento da imaginação individual de cada criador, verificando-se consequentemente a mera aplicação mecânica desses conceitos. Perdia-se na arte a sensibilidade simbólica em prol de uma objectividade tão característica do pensamento moderno. Visto ser esta pintura mural anterior a esse período, poderá ser produto de uma má interpretação do pintor ou mesmo uma ideia sua desviando-se do que usualmente vemos retratado.

VR: Talvez nunca venhamos a sabê-lo… Quanto a às enciclopédias, referes-te a César Ripa?

DG: Sim, também. Mas antes de César Ripa e da sua monumental obra Iconologia, à que não esquecer, entre outros, Alciato e a sua obra Emblemata.

 CESAR RIPA E ALCIATO
 
César Ripa (séc. XVII) e Alciato (séc. VXI)

VR: Independentemente de leituras simbólicas, já fico contente com a simples ideia de ter descoberto a Ave de S. Cristóvão e a gaiola, que possivelmente manteve-se escondida aos olhos de muitos que deambularam pela Charola nos últimos séculos.

DG: Também fico feliz apenas com esse pequeno detalhe.

VR: E se for ilusão óptica e tudo produto da nossa imaginação?

DG: O pintor não é alguém inspirado, mas sim alguém capaz de inspirar os outros, disse Dali. Talvez seja isso que nos esteja então acontecer!

VR: Foi uma bela inspiração!

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(Parte II - brevemente)

17 comentários:

RUI GONÇALVES disse...

Um especial obrigado e público ao Voltron pela atenção que deu aos diversos postes que se escreveram sobre SC e que o levaram a contribuir com mais uma descoberta (será?) quando pensávamos que já nada mais havia a dizer sobre SC. Eu pessoalmente não conhecia aquela ave e quantas vezes não olhei para aquela pintura. Foi olho de águia.

Anónimo disse...

Nem o quadro conhecia mas gostei de ler o texto.

Adriana

Rui Nunes disse...

Foi uma leitura interessante, uma de muitas que me tem prendido, cada vez mais à minha cidade. Só tenho um reparo sobre o termo laranja em Turco, crendo ser "portakal" o que me informaram, na minha visita a Istambul, há uns anos.

Anónimo disse...

Olá Rui Nunes,
Também fiz a Turquia à uns anos e nunca mais me esqueci desse detalhe. Não sei no entanto se é portakal ou portokal mas lembro-me de eles brincarem com o facto quando sabiam que eu era de Portugal. Vou pedir ao Voltron que verifique visto depois ter sido ele a escrever isso. Contaram-lhe o que seignificava para eles em Portugal pedir uma cerveja super-bock?

DEGRACONIS

Anónimo disse...

Vi isto agora no wikipédia: "A laranja doce foi trazida da China para a Europa no século XVI pelos portugueses. É por isso que as laranjas doces são denominadas "portuguesas" em vários países, especialmente nos Bálcãs (por exemplo, laranja em grego é portokali e portakal em turco), em romeno é portocala e portogallo com diferentes grafias nos vários dialectos italianos"

DEGRACONIS

Anónimo disse...

Alguém esqueceu de colocar o link no fim do comentário para o forum.

Anónimo disse...

?

Anónimo disse...

O vosso forum está cheio de spam

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
RUI GONÇALVES disse...

Já não está. Obrigado pela informação.

Em virtude do forum estar com muito pouco movimento não tem sido alvo de muita atenção.Devemos o ir fechar temporariamente para nos concentrarmos nas pesquisas que poderão levar à publicação de outros posts.

Por agora estamos concentrados no próximo encontro, o qual esperamos que vá de encontro aos V. interesses culturais.

RUI GONÇALVES disse...

Quanto ao facto de não estar um link no fim do artigo foi por esquecimento.

Infelizmente nem chegamos a receber comentários a dizer se gostaram ou não dos artigos que temos escrito.

É desmotivador mas não paramos por isso, pelo menos nos próximos tempos para os quais temos coisas programadas.

Anónimo disse...

E mais uma manifestação de agrado: Gostei. Contudo não é este artigo ou tipo de texto que mais me entusiasma. Sou Toupeira.

Anónimo disse...

Não consigo entrar no forum.

Anónimo disse...

Interessante esta vossa conversa sobre a gaiola da luz, que tinha uma ave que ia voltar!
Sobre portugal, o país das doces laranjas, e o porto do graal, o país dos nossos pais e avós!
Sempre a aprender, obrigada!

Anónimo disse...

O forum parece ter sido apagado. Não se consegue ter acesso desde ontem.Que se passa???

Anónimo disse...

Não tenho email do google como posso meter-me como seguidor no blog?
Carla Pinto

Anónimo disse...

Muito bem meus queridos
Vera Sarmento
Entroncamento