Contacte-nos através do nosso email:
cethomar@hotmail.com

10/20/2008

Santa Iria


“Seis séculos e meio haviam decorrido
Desde que tinha vindo à terra o Nazareno
Quando se deu um caso horrível na Nabância,
Que inda hoje faz vibrar um coração sereno,
Por ver com repugnância
Um crime monstruoso e inútil cometido.

O godo Castinaldo,
Então governador dessa cidade linda
Vivia com a esposa Cássia, e o seu Britaldo
(O filho estremecido), uma ventura infinda.
Estavam mesmo ao pé da casa dois conventos;
Um de beneditinos
Com Célio por abade; o outro era de freiras.

Levavam para lá os nobres suas filhas
Querendo-as resguardar de múltiplas canseiras
E tôrvas armadilhas.
Entregues à pureza austera desses hinos
D´exaltação e fé… sentido arroubamentos,
Por vezes lá ficava o seu viver cativo.
Eugénia e Hermigídio (os pais da linda Iria).
Cunhada e ele irmão do bom abade Célio,
Lá foram entregar-lhe a filha em certo dia;
Mas ele, que os ouvira, estava apreensivo.
Pois bem, seria entregue às tias Casta e Júlia,
Professas no convento à beira do Nabão.
Os pais acharam boa aquela decisão.

Passava pelo ar medonha tempestade;
Ia explodindo hercúlea!
Seguiam pelo espaço as nuvens, mansamente,
Fazendo um cortinado espesso em frente d´Hélio,
E a Terra, em convulsões, rugia ferozmente;
Apenas sossegou ao vir a claridade
Em doce quietude, atrás dessa procela,
Tornando a Natureza altiva, inda mais bela.

A jovem ao crescer mostrava tantos dons
Como podiam ter no céu os anjos bons:
Virtude rara, enfim, beleza peregrina,
Bondade a ressaltar da frase inteligente,
E duma singeleza humilde tão divina…
Podia alguém ficar ao vê-la, indiferente?...
Estava no convento um monge de prestígio
Que Célio convidou p´ra perceptor de Iria.
Chamava-se Ramígio,
E àquela mocidade em flor muito querida,
Acalentando um sonho impuro, no segredo
Misterioso d´alma.
Havia de o viver depois, com toda a alma,
Mas tinha que esperar pois era ainda cedo.

Fazia-se a S. Pedro [de Fins] uma pomposa festa
Na sua capelinha,
E mal cabia nela a gente que então vinha.
Britaldo foi; e ao ver junto às religiosas
Uma gentil donzela orando, tão modesta,
Sentiu alvoraçar-se o coração ardente.
Não mais se desviou o olhar daquele rosto,
Ouvindo unicamente
Num doce murmurar, canções voluptuosas.
E quando terminou a festa inda sonhava!
Deixar de a contemplar p´ra ele era desgosto
Que muito lhe custava.

Não foram de sossego os dias que seguiram!
O incêndio que abrasava o peito, era maior!...
Olhava p´r´o convento, andava em derredor…
Pretextos que arranjou de nada lhe serviam…
Não a tornou a ver.
Encarregou por fim alguém de lhe dizer
- O quanto idolatrava a sua formosura;
Que a vida que vivia agora sem ventura,
Inferno tenebroso,
Podia transformar-se em céu mui radioso,
Se ela quisesse ser um anjo tutelar
Do coração amante, ansioso por lhe dar
O mais encantador dos lindos himineus! –
A jovem que escutou ruborizada, a medo,
A ardência dum amor guardado no segredo
Dum peito juvenil, mandou dizer aflita:
Que havia de passar a vida aos pés de Deus!
Sentia piedade e dor quási infinita
Por lhe vibrar um golpe assim, no coração!
Que lhe pedia até, não a lembrasse mais;
O tempo lhe daria, enfim, conformação.

Ramígio, que aguardava há muito a ocasião
De lhe fazer também, o vil, uma proposta.
Sabendo que Britaldo a amava, e que resposta
Iria lhe mandara,
Contou-lhe o que esperava há muito, impaciente.
Mas ela repeliu-o altiva, com firmeza.
Quis-se vingar Ramígio; e, com audácia rara
Elaborou um plano. Após, cinicamente,
Fez com que se contasse ao triste apaixonado:
- Que fora escarnecido e bem ludibriado!
Aquela singeleza
Devia mascarar a agrura do pecado. –
Ficou entregue à raiva esse mancebo, um pouco,
Sentindo embaralhar um pensamento louco.
Inda guardara esp´rança
De a conquistar um dia. Agora… que vingança!...
Havia de o servir com gosto Banaão,
Soldado mais cruel que um bruto, que um selvagem.
Por mais do que uma vez mostrara ter coragem!...
E lá lhe transmitiu com fúria o que queria.

Na margem do Nabão
(Onde hoje inda se vê um nicho com a imagem).
Em pequenina gruta estava a pobre Iria.
Entregue a alguma prece. As águas sussurrando,
Acostumadas já a ouvi-la, iam rezando
As mesmas orações. Tudo era silencioso.
Mas nisto Banaão entrou; e, criminoso,
Gozando o seu terror, sem ter um calafrio,
Vibrou-lhe punhalada;
E, ao vê-la sucumbir arremessou-a ao rio
Tirando-lhe primeiro a roupa ensanguentada
Para provar o crime aos olhos de Britaldo.

Iria não voltava; e Célio, Júlia, Casta,
Depois de a procuar, julgando que a desgraça
Quisera assinalar a sua acção nefasta,
Bebim lentamente a dor, naquela taça
Que a vida encosta a rir aos lábios mortais!...
Viviam na agonia os três e os pobres pais.
O abade já sentia às vezes que a razão
Enfraquecia muito. À noite, sem dormir,
Tentava esse mistério enorme descobrir.
E teve finalmente em sonho, enfim! Que os levaria
Ao sítio onde se achava a sua pobre Iria.
Ergue-se delirante e foi com muita gente
Até ao pé do rio.
Fazendo nesse instante as águas um desvio
Por onde caminhou a triste multidão
Tal como em procissão,
Levando cada peito anseio diferente.
Depois de muito andar, chegaram à cidade
Aonde se abrigara em tumulo riquíssimo
A virgem, que o milagre então tornava santa!
O caso, na verdade,
Que a tradição guardou e ainda nos encanta,
É estranho, invulgaríssimo!...

Essa cidade linda e boa, onde parou
O corpo aureolado e santo por martírio,
Quis-lhe prestar seu culto e conseguiu-o bem.
- Amou-a com delírio,
E o nome que já tinha há muito, abandonou,
Para tornar o dela; ainda agora o tem;
(Iria quer´dizer o mesmo do que Irene).
Simplificou-o mais, com o tempo, o povo infrene,
E em vez de Santa Irene é hoje Santarém.”

Poema retirado de “Tomar Lendário” de Antónia Guerra editado em 1934!

Dedicado à Santa Iria Padroeira de Tomar.


Procissão Lenda Santa Iria 2005

185 comentários: